A SOPA DA VIDA
Por João Oliveira
Já eram quase 18 horas, hora do
jantar em Rongbuk, o mosteiro mais alto do mundo, localizado a 4980 metros de
altitude, apenas 200 metros abaixo de um dos acampamentos base do Monte Everest.
Fundado em 1902 por Ngawang Tenzin Norbu o mosteiro pertence à escola
Nyingma do budismo tibetano, conhecida por suas práticas meditativas profundas
e pelo ensino do Dzogchen, considerado o caminho direto para a realização
espiritual. Os monges que residem lá seguem as tradições se dedicando a
práticas meditativas e espirituais.
Uma antiga tradição é a prática de silêncio, conhecida como Mauna em
sânscrito. Os monges fazem seus votos e mantém silêncio durante todo o
dia. No entanto, durante o jantar (segundo ouvi falar), é permitido proferir
uma frase: “uma única frase”.
Ocorreu que, numa dessas noites, o Khenpo (líder espiritual do mosteiro)
disse a seguinte frase:
- Assim não é possível! Sem sal
fica muito difícil aproveitar essa sopa até o fim.
E ficou em silêncio! Todos se entreolharam,
mas, o silêncio prevaleceu até o outro dia, até o outro jantar quando, como
sabemos, é permitido dizer uma única frase.
Ananda, um jovem monge vindo de Tingri,
uma pequena cidade tibetana, disse:
- Mestre, na noite de ontem na
sua lição para nós, o senhor estava se referindo que: a ausência de sal na sopa
nos lembra que, na vida, muitas vezes enfrentamos situações desprovidas de
alegria ou sabor. Contudo, é nossa capacidade de encontrar contentamento, mesmo
nessas circunstâncias, que verdadeiramente nos nutre e sustenta. Assim como a
sopa, a vida pode ser plena, mesmo sem todos os condimentos desejados? Era isso
mesmo mestre?
Padma, vindo de Shigatse (um
importante centro cultural e religioso na região) levantou o braço
direito e falou com tom forte e assertivo:
- Nada disso irmão, nosso mestre
nos disse que a simplicidade da sopa sem sal pode ser vista como um convite
para reconhecermos a pureza inerente em nossa existência. Tal como o lótus que
floresce na lama, devemos aproveitar as experiências mais básicas da vida para
cultivar a nossa iluminação espiritual, transformando o ordinário em
extraordinário através da nossa percepção.
Tenzin, cujo nome significa
"detentor dos ensinamentos" não esperou nem um segundo e emendou
com a sua interpretação:
- Não irmãos: esta sopa sem sal
nos ensina a resiliência frente às adversidades da vida. Assim como nos
adaptamos ao sabor da sopa, devemos aprender a aceitar as situações que a vida
nos apresenta, sabendo que a essência da sabedoria reside na nossa capacidade
de manter a serenidade e adaptar-nos, transformando desafios em oportunidades
de crescimento.
O jovem Dawa (nome tibetano
significa "lua" e é simbólico de clareza e iluminação) estava sentado
ao lado do idoso Khenpo, um lugar de grande prestígio na mesa, disse:
- Irmãos, estou mais próximo de
nosso líder e posso sentir a energia que dele emana. O que ele quis dizer foi
que a falta de sal na sopa nos remete à clareza que surge da simplicidade. Na
vida, o acúmulo de desejos e apegos turva nossa percepção, assim como o sal em
excesso pode ofuscar os verdadeiros sabores. Ao abraçarmos a simplicidade,
cultivamos uma mente clara, capaz de perceber a verdadeira essência de todas as
experiências.
Todos ficaram em profundo silêncio.
Nesse momento o Khenpo, cujo verdadeiro nome era Rinchen Gyatso (precioso
oceano em tibetano) perdeu a paciência, deu um soco na mesa e gritou:
- Dawa! Me passa essa porcaria de
Sal que está do seu lado. A sopa continua horrível! Totalmente sem sal!
Reconhecer que nossas
interpretações são apenas isso – interpretações – pode nos ajudar a questionar
nossas suposições e a procurar clarificações quando confrontados com mensagens
que parecem ambíguas.
A verdade é que nossas crenças
pessoais podem mudar totalmente o sentido do que é dito, levando a
mal-entendidos que, às vezes, podem até azedar as relações. Isso é um lembrete
de que a gente precisa tentar entender melhor o que os outros estão dizendo,
perguntando mais e supondo menos.
Com certeza isso irá evitar confusões e manter
todo mundo na mesma página, facilitando a convivência. No final das contas, uma
conversa clara e direta, sem rodeios, é o melhor tempero para qualquer relação
seja isso na vida pessoal/familiar ou no ambiente laboral.
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