Era uma vez... quando foi
Eu bem ao certo não sei!
Porém sei que era uma vez
Um sapateiro e um rei.
Olha, Helena, o sapateiro
Era um pobre remendão,
Casado e com quatro filhos,
Que vivia quasi sem pão.
No recanto de uma escada
Noite e dia trabalhava,
E por allivio de máguas,
Esta cantiga cantava:
"Ribeiros correm aos rios,
Os rios correm ao mar;
São tudo leis deste mundo
Que ninguém póde atalhar:
Quem nasce para ser pobre
Não lhe vale o trabalhar!"
O rei tinha montes d'ouro
E joias em profusão,
E tinha mais que ouro e joias,
Pois tinha um bom coração.
Em vendo um pobre, acudia-lhe
Sem que o soubesse ninguem,
Que assim quer Deus que se faça.
E assim o faz tua mãe.
Por muitas vezes saía
Sem criados de libré,
E sósinho e disfarçado
Corria a cidade a pé.
Na rua do sapateiro
Passa o rei e ouve cantar:
"Quem nasce para ser pobre
Não lhe vale o trabalhar."
Isto uma vez e mais de uma
com voz que o pranto cortava,
E o rei condoeu-se d'alma
Do velho que assim cantava.
Chegado ao palacio ordena
Que lhe arranje o seu copeiro
Um bolo, do melhorio,
E que o mande ao sapateiro.
No melhorio do bolo
E' que estava o delicado,
Pois era de peças d'ouro
Todo, todo recheado.
Os pequenos, quando o viram,
Helena, imagina então,
Os olhos que lhe deitaram
Elles que nem tinham pão!...
Mas o pae a um seu compadre,
Que ás vezes o soccorria,
Foi dar de presente o bolo,
Sem ver o que nelle havia!
No dia seguinte o rei
Torna de novo a passar,
E com grande espanto seu
Ouve ainda o velho cantar;
"Ribeiros correm aos rios,
Os rios correm ao mar;
São tudo leis deste mundo
Que ninguem póde atalhar:
Quem nasce para ser pobre
Não lhe vale o trabalhar!"
Mandou-o chamar ao palacio,
E agastado então o rei
Lhe diz: " Que é das peças d'ouro
Que no bolo te mandei?"
O pobre do sapateiro
Tremendo conta a verdade:
Abalou-se novamente
O rei na sua piedade.
"Toma esta sacca", lhe diz,
"Ao erario vai daqui
Enchê-la de peças de ouro,
Que as peças são para ti."
Oh! Helena, suppõe tu
Qual foi a sua alegria,
Vendo que um thesouro aos filhos
Naquella sacca traria!...
Encheu-a a mais não poder,
Pô-la ás costas e partiu;
Deu quatro passos...nem tantos,
E nisto morto caíu!...
Na mão direita lhe acharam
Um papel onde se lia
Esta sentença, que o povo
Ser sobrehumana dizia:
"Eu para pobre o criei,
Tu rico fazê-lo queres;
Agora alli o tens morto:
Dá-lhe a vida, si puderes."
Bulhão Pato (1829-1912)
Eu bem ao certo não sei!
Porém sei que era uma vez
Um sapateiro e um rei.
Olha, Helena, o sapateiro
Era um pobre remendão,
Casado e com quatro filhos,
Que vivia quasi sem pão.
No recanto de uma escada
Noite e dia trabalhava,
E por allivio de máguas,
Esta cantiga cantava:
"Ribeiros correm aos rios,
Os rios correm ao mar;
São tudo leis deste mundo
Que ninguém póde atalhar:
Quem nasce para ser pobre
Não lhe vale o trabalhar!"
O rei tinha montes d'ouro
E joias em profusão,
E tinha mais que ouro e joias,
Pois tinha um bom coração.
Em vendo um pobre, acudia-lhe
Sem que o soubesse ninguem,
Que assim quer Deus que se faça.
E assim o faz tua mãe.
Por muitas vezes saía
Sem criados de libré,
E sósinho e disfarçado
Corria a cidade a pé.
Na rua do sapateiro
Passa o rei e ouve cantar:
"Quem nasce para ser pobre
Não lhe vale o trabalhar."
Isto uma vez e mais de uma
com voz que o pranto cortava,
E o rei condoeu-se d'alma
Do velho que assim cantava.
Chegado ao palacio ordena
Que lhe arranje o seu copeiro
Um bolo, do melhorio,
E que o mande ao sapateiro.
No melhorio do bolo
E' que estava o delicado,
Pois era de peças d'ouro
Todo, todo recheado.
Os pequenos, quando o viram,
Helena, imagina então,
Os olhos que lhe deitaram
Elles que nem tinham pão!...
Mas o pae a um seu compadre,
Que ás vezes o soccorria,
Foi dar de presente o bolo,
Sem ver o que nelle havia!
No dia seguinte o rei
Torna de novo a passar,
E com grande espanto seu
Ouve ainda o velho cantar;
"Ribeiros correm aos rios,
Os rios correm ao mar;
São tudo leis deste mundo
Que ninguem póde atalhar:
Quem nasce para ser pobre
Não lhe vale o trabalhar!"
Mandou-o chamar ao palacio,
E agastado então o rei
Lhe diz: " Que é das peças d'ouro
Que no bolo te mandei?"
O pobre do sapateiro
Tremendo conta a verdade:
Abalou-se novamente
O rei na sua piedade.
"Toma esta sacca", lhe diz,
"Ao erario vai daqui
Enchê-la de peças de ouro,
Que as peças são para ti."
Oh! Helena, suppõe tu
Qual foi a sua alegria,
Vendo que um thesouro aos filhos
Naquella sacca traria!...
Encheu-a a mais não poder,
Pô-la ás costas e partiu;
Deu quatro passos...nem tantos,
E nisto morto caíu!...
Na mão direita lhe acharam
Um papel onde se lia
Esta sentença, que o povo
Ser sobrehumana dizia:
"Eu para pobre o criei,
Tu rico fazê-lo queres;
Agora alli o tens morto:
Dá-lhe a vida, si puderes."
Bulhão Pato (1829-1912)
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