Por João Oliveira
O expresso transiberiano já estava começando a cruzar o deserto de Gobi na Mongólia quando os dois homens se encontraram em um dos luxuosos vagões restaurante do trem. O espaço estava lotado e, para se sentarem ao lado da janela os dois estranhos tiveram de dividir a mesma mesa.
As feições revelavam as origens, um claramente chinês, provavelmente voltando para casa em Pequim e o outro um moscovita de primeira classe, isso facilmente percebível pelo tom avermelhado de suas gordas bochechas. O chinês contemplava a imensidão do deserto quando o outro iniciou a conversa em seu próprio idioma:
- Não é lindo o vazio iluminado pelo pôr do sol?
Para sua surpresa o que deveria ser uma frase solitária e sem retorno recebeu resposta em uma fala carregada de sotaque, mas, perfeitamente compreensível:
- Sim! Nossos países são separados por tantas coisas diferentes e aqui o que nos separa é o nada: apenas areia.
- O senhor fala russo muito bem? Trabalha em Moscou? – Perguntou de forma solene.
- Na verdade aprendi a falar russo na China mesmo. Na adolescência tinha planos de morar em seu país. Mas, a vida me levou para outros caminhos. Hoje sou açougueiro em Pequim e tirei uns dias de férias em Moscou.
- Mas que grande coincidência! – Exclamou em alto tom o russo – Eu também sou açougueiro!
- Que grande coincidência mesmo: dois companheiros de facas se encontrando para jantar. O senhor é de Moscou mesmo?
- Sim, sou e o senhor?
- Sou do sul da China da região de Yulin.
- Sim! Já ouvir muito falar! – Exclamou com empolgação – Dizem que lá existe um festival onde o prato principal é a carne de cachorro. Que coisa terrível com esses pobres animais.
- Senhor. – Falou o chinês com o rosto pálido- Eu sou especializado em corte canino, sou açougueiro de carne de cachorro, um dos mais famosos em meu país.
O clima da mesa mudou radicalmente, mas, mesmo intimidado pela fala do chinês o açougueiro russo continuou o seu ataque:
- É um absurdo que a china ainda mate e coma cães e gatos. Esses são animais carinhosos e fieis aos homens.
Sem mudar sua postura e começando a saborear o jantar o açougueiro chinês falou em tom macio;
- Caro companheiro de facas. Não só a China aprecia os sabores das carnes de cães e gatos. No Canadá, Havaí, Suíça, Vietnã, Coreia do Sul e nas Ilhas Polinésias cães e gatos são servidos como carne de alto nível nas mesas mais exigentes.
- Como??? Isso não é possível! O mundo civilizado não teria esse comportamento absurdo! – Espantou-se o açougueiro russo – Carne para se comer só mesmo de vacas, porcos, galinhas, cabritos, perus, ovelhas ...
- A lista é grande não é mesmo? Eu, por exemplo, não como carne bovina. Tenho um apreço especial por esses animais. Na verdade, em nossa casa no campo, crio vacas para leite e seria incapaz de matar uma delas para comer.
O russo, naquele momento, parou de respirar por alguns segundos. Olhando firme nos olhos do chinês disse:
- Está me dizendo que você tem vacas como animais de estimação?
- Sim! Acho que sim, todas têm nome, andam soltas pelas nossas terras... delas só extraímos o leite mesmo. – Falou calmamente o chinês que já estava quase terminando o seu prato enquanto o russo ainda não tinha experimentado uma única colherada da sopa servida a bordo.
- Como isso pode ser possível? - Questionou boquiaberto o russo. – Esses animais são criados para se comer! Já os cães e os gatos são animais diferentes.
- Essa é uma fala que merece um grande destaque amigo de facas: qual seria o animal criado para se comer? Existe alguma diferenciação entre esses animais?
- Claro que sim: é uma questão de amor! Não se come um bicho que você ama.
- Isso – disse o chinês- Isso mesmo. Eu amo as vacas, o senhor ama cães e gatos. Isso define o que pomos na mesa para comer e o que decidimos tratar com carinho e respeito. Apenas isso.
Lá fora o tom laranja do deserto foi dando lugar a um azul escuro. Os dois açougueiros, sentados à mesma mesa, saboreavam uma sopa de legumes, algo que não causava nenhum distúrbio cultural sobre suas preferências de corte.
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