Caro Professor Freud
Tenho boas notícias a dar sobre o meu problema com Spielrein. Eu vi tudo muito mais negro. Estava quase certo de que se vingaria, depois que rompi com ela, e só me surpreendi com a banalidade da forma que essa vingança assumiu. Anteontem ela veio à minha casa e tivemos uma conversa muito decente, durante a qual transpirou que o boato que corre a meu respeito não parte dela em absoluto.
Foram minhas idéias de referência, bem compreensíveis nas circunstâncias que lhe atribuíram tal boato, mas desejo me retratar incontinenti. Além disso ela se libertou magnificamente bem da transferência e não sofreu recaída (se se excluir um paroxismo de choro após a separação). A vontade de estar com o senhor não visava uma intriga, mas apenas preparar o caminho para uma conversa comigo.
Agora, após sua segunda carta, ela resolveu me procurar diretamente. Embora sem me deixar levar a um remorso infundado, deploro os pecados que cometi, pois, em grande parte, posso ser incriminado pelas extravagantes esperanças de minha ex-paciente. Com efeito, em obediência a meu princípio fundamental de levar todas as pessoas a sério, até o limite extremo, discuti com ela o problema do filho. Imaginando que falava em termos teóricos quando, na realidade, Eros se agitava sorrateiramente nos bastidores. Atribuí, pois, apenas à minha paciente todos os outros desejos e esperanças, sem ver em mim a mesma coisa.
Quando a situação se tornou tão tensa a ponto de a prolongada persistência no relacionamento só poder ser resolvida por atos sexuais, defendi-me de uma maneira que não encontra justificativa moral. Possuído pelo delírio de ser vítima dos estratagemas sexuais de minha paciente, escrevi à mãe dela dizendo que eu não era o gratificador dos desejos sexuais da filha, mas simplesmente seu médico, e exortando-a a libertar-me da mesma.
Tendo em vista o fato de que pouco antes a paciente fora minha amiga e gozara de minha confiança, meu gesto foi uma autêntica safadeza que só com muita relutância confesso ao senhor como meu pai. Gostaria agora de lhe pedir um grande favor: que mandasse algumas linhas a Frl. Spielrein, dizendo-lhe que o informei de todo o assunto, e em particular da carta aos pais dela, que é o que mais lamento.
Quero dar à minha paciente pelo menos uma satisfação: a de que tanto ela quanto o senhor sabem de minha honestidade. Peço-lhe mil perdões, foi só minha tolice que o envolveu nesta confusão. Estou, no entanto, contente por afinal eu não ter me enganado sobre o caráter de minha paciente, pois de outro modo ficaria em dúvida quanto à firmeza de meu julgamento e isso poderia estorvar consideravelmente o meu trabalho.
É grande a expectativa com que penso na América. Já reservei a passagem para o G. Washington, mas a cabine é cara demais. Quanto a Marcinowski o senhor me deixou tranqüilo, não preciso de mais nenhum documento.
Suponho que nesse ínterim tenha recebido uma carta do estudioso Honegger, que certamente o divertirá. O rapaz é muito inteligente e sutil: quer se dedicaqr à psiquiatria, certa vez se consultou comigo devido a uma perda do sentido da realidade que durou alguns dias (Psicastenia = introversão da libido = Dem. Prec.). Tento levá-lo indiretamente à análise para que possa analisar a si mesmo conscientemente, desse modo ele talvez se antecipe à autodestruição automática da Dem. Pr..
Sua carta chegou ainda há pouco – obrigado! A realidade já me consolou. Mesmo assim fico grato por seu bondoso interesse.
Atenho-me na expectativa de seu ensaio para o Jahrbuch. Adler aquiesceu de bom grado, prometendo mandar alguma coisa.
Frl. E – vai se saindo muito bem, é interessante. Ela conhece uma paciente de Adler, mas não disse o nome.
Com as mais gratas lembranças
do Jung
Obs. de João Oliveira: Se você não entendeu, leia de novo, ou veja o filme Jornada da Alma de 2002 que conta a história do forte caso amoroso de Jung com sua paciente Sabina Spielrein, uma das primeiras mulheres psicanalistas do mundo morta em 1942 pelos nazistas
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