Por Beatriz Acampora
Psicóloga (CRP05/32030) – Arteterapeuta - Escritora
Talvez uma das coisas que as pessoas façam todos os dias das suas vidas é se olhar no espelho: para se arrumar, para avaliar como está sua apresentação pessoal, para encontrar algum defeito ou até mesmo acertar algo que possa parecer fora do lugar. Uma ou outra pessoa se olha no espelho para se elogiar, mas isso é raro em um mundo de competições e comparações.
Assim é a nossa personagem: ela foi desacreditada por seus pais durante toda a sua vida, até que, quando cresceu, em meio a muitas dificuldades de relacionamentos, tinha a pior de todas as relações: consigo mesma. Não gostava de se olhar no espelho e até mesmo evitava que isso ocorresse.
Em sua casa havia um único espelho de porte médio que não a refletia de corpo inteiro. Ela buscava mantê-lo coberto por um pano e, muito raramente, quando precisava ver como estava seu cabelo ou sua roupa, em função de alguma reunião importante no trabalho, ela descobria um pequeno pedaço do espelho e se via rapidamente.
Aprendeu a passar batom, pentear o cabelo e até mesmo se maquiar sem precisar do espelho, apenas dava uma rápida conferida no final para ver se estava tudo ok. Em seus momentos livres dava preferência aos livros e filmes, alguns encontros com poucos amigos e ficar com seu gato.
Certo dia, chegando do trabalho, viu algo inusitado: muitos reflexos luminosos no teto e um monte de fragmentos de espelho no chão. Seu gato miava sem parar e ela já havia entendido que muito provavelmente aquilo foi um acidente que o envolvia diretamente.
Ela respirou fundo e foi limpar a bagunça. Enquanto colocava cuidadosamente os pequenos pedaços do espelho em um pedaço de jornal se distraiu com as formas diferentes que eles tinham e olhou para um deles com atenção. Viu, então, seu olho direito e sua sobrancelha. Percebeu que aquele olho era bonito, amendoado, diferente de tudo o que ela já tinha visto: nem acreditou que aquele olho era dela.
Pegou um outro fragmento de espelho e viu sua boca, percebeu que era carnuda, bela e que tinha qualidades nunca apreendidas. Em um outro pedaço de espelho, viu seu nariz: ela nunca tinha sequer analisado a importância do seu nariz – era por ele que ela respirava e estava viva.
Decidiu guardar alguns fragmentos do espelho e todos os dias brincava de se olhar através deles e se divertia com possibilidades nunca antes vislumbradas: partes do seu corpo que apenas tinha conhecimento da existência porque simplesmente fazem parte do corpo de todas as pessoas. Mas a consciência delas fazia toda a diferença. Dentro dela foi se reconstruindo, pedaço a pedaço, fragmento a fragmento, valorizando cada parte de si, restaurando sua autoimagem.
Em uma manhã acordou se sentindo tão bem que abraçou seu gato e agradeceu pelo incidente, foi até a casa de sua vizinha, pediu para se ver no espelho dela. E quando se olhou, pela primeira vez em muito tempo, de corpo inteiro, viu uma mulher linda, inteligente, que superou muitos obstáculos e que era capaz de ser feliz do jeito que era: inteira.
A partir daquele dia o espelho se tornou seu melhor amigo. E todos os dias ela sorri para ele e ele sorri de volta para ela. A vida ficou mais fácil simplesmente porque ela passou a acreditar em si mesma, a se respeitar e se amar sem que fosse preciso nenhuma mudança.
Se a vida pode ser difícil, ela também pode ser doce. Quando a vida se apresenta como dura, com restrições e poucas alternativas, ela também se revela nas possibilidades em pequenos detalhes que podem fazer toda a diferença. É preciso ter olhos curiosos e ver através de fragmentos que transformam.
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